- Insurgência Reconstrução Democrática
- 1 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
Por Juan Leal e Tarcísio Motta

Não é possível pensar a vida no Rio de Janeiro sem considerar o domínio das milícias sobre os territórios e a sua influência na dinâmica política da cidade. Se um dia as milícias foram consideradas apenas grupos de segurança privada que incidiam no vácuo deixado pelo Estado, hoje, elas são grupos organizados que detêm terras e comportam-se como fornecedores de gás e de serviços de tv a cabo, além de atuarem com serviços de matadores de aluguel e de possuírem negócios junto ao tráfico de drogas. Mais do que isso, são parte importante nos espaços de poder, com braços no alto escalão da prefeitura e do governo do estado, nas casas legislativas e no comando das polícias. No Rio, as milícias não são um poder paralelo, elas estão na estrutura do Estado, atravessando diferentes governos, com condição de definir o planejamento urbano da cidade.
De acordo com um levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), feito em parceria com Fogo Cruzado, as milícias já controlam 57,5% do território da capital. O crescimento exponencial do domínio desses grupos está intimamente associado ao projeto de cidade desenvolvido nas últimas duas décadas. Deste controle territorial, 93,8% está localizado na Zona Oeste, região com maior potencial de expansão urbanística e alvo dos investimentos bilionários durante o período dos megaeventos. As construções dos equipamentos esportivos foram acompanhadas de investimentos em transporte, especialmente com o corredor do BRT, de infraestrutura para atração de empresas e, consequentemente, da especulação imobiliária. Diante do adensamento das Zonas Sul e Norte da cidade, a Zona Oeste foi palco de um processo de expansão significativo neste período.
Ao mesmo tempo, os grupos de segurança particular, anteriormente chamados de “polícia mineira”, consolidavam-se cada vez mais e com apoio político para sua atuação. Em 2006, o então candidato a governador do estado, ora sub-prefeito da Zona Oeste, Eduardo Paes, afirmou que as milícias atuavam “com inteligência” e levavam “tranquilidade para a população”. Dois anos depois, Paes seria eleito prefeito da cidade e faria do Rio de Janeiro um laboratório do capital, marcando o planejamento urbanístico da cidade. Reeleito em 2012, o prefeito entraria para a História com o maior número de remoções forçadas, retirando inúmeras famílias de suas casas, ao passo em que a grilagem de terras avançava em bairros da Zona Oeste em conluio com a especulação imobiliária.
Este movimento casado possibilitou que as milícias passassem a controlar terras com alto valor de mercado, fazendo com que o negócio imobiliário rendesse lucros exorbitantes aos grupos criminosos. Recentemente, em delação premiada, o assassino confesso de Marielle Franco, Ronnie Lessa, afirmou que o pagamento pelo crime seria feito a partir da transferência de terras que somavam quantia próxima de R$100 milhões.
Em um país que nunca realizou sua reforma agrária, a grilagem de terras marca a História como um dos principais elementos de reafirmação das desigualdades sociais e dos crimes praticados na cidade e no campo. Em 2022, o Brasil atingiu a marca média de um conflito por terra a cada quatro horas. As mãos que dizimaram a população indígena e que, até hoje, assassinam centenas de pessoas nas regiões rurais são as mesmas que mataram Marielle Franco e que impõem o terror à maior parte do povo carioca.
A delação de Lessa revela a estrutura complexa de atuação das milícias e a forma como essa rede envolve agentes públicos de diferentes escalões. Após o domínio da terra, os grupos milicianos conseguem a topografia e a regularização a partir do trabalho de empresas legalizadas, com inserção no mercado. E, muitas vezes, se valem de legislações criadas com o intuito de beneficiar a construção de moradias populares para facilitar o processo. Para isso, a colaboração dos vereadores é essencial.
Um dos instrumentos são as chamadas Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), destinadas ao assentamento de moradias populares, demarcadas no Plano Diretor ou através da lei de zoneamento. A finalidade da legislação tem sido constantemente desviada na Câmara Municipal através da criação de zonas à serviço da necessidade de regularização de terras controladas pelas milícias. Em 2017, Chiquinho Brazão – acusado de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle - apresentou um projeto de lei para criar AEIS nos bairros do Tanque e da Praça Seca. Das quatorze localidades apresentadas no PL, oito eram notavelmente controladas pelas milícias. Marielle foi enfaticamente contrária ao projeto.
Por trás dos detalhes revelados pelo assassino de Marielle, está uma constatação que já tinha vindo à luz na Comissão Parlamentar de Inquérito conduzida pelo PSOL em 2008: o combate às milícias exige um esforço coordenado de todos os poderes públicos. Não se trata apenas de mudanças na legislação, tampouco de abrir uma guerra bélica com esses grupos, que, afinal, são parte do próprio aparato repressivo do Estado. É urgente desmontar a rede que sustenta a economia dos grupos milicianos. A fiscalização da prestação de serviços nos territórios e a regulação do mercado imobiliário são pontos de partida fundamentais para isso.
É preciso ressaltar: os lucros das milícias através da grilagem de terras estão ancorados em seu poder político e no aparelhamento da própria estrutura do Estado. Portanto, é inevitável que o combate às milícias passe, em grande parte, pela arena eleitoral. O Rio de Janeiro precisa refundar seu marco de poder. Diante de grupos criminosos que controlam a maioria do território da cidade, o compromisso político de combate às milícias deve ser integral. O povo do Rio de Janeiro vem pagando muito caro por acordos criminosos feitos por quem governa a cidade há muito tempo. Quem se associa às milícias - seja nomeando milicianos como secretários e assessores, seja flexibilizando legislações para possibilitar o avanço da grilagem - não pode mais ter espaço no aparelho público. Com milícia, não tem jogo. Não pode ter.
Juan Leal é cientista social e presidente do PSOL Carioca.
Tarcísio Motta é professor e deputado federal pelo PSOL.


















