- Insurgência Reconstrução Democrática
- 7 de jun. de 2024
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Por Helena Martins e Tiago Coutinho

As greves das e dos servidores docentes e técnico-administrativos federais brasileiros são bastante reveladoras dos projetos em disputa e dos riscos de serem repetidos os erros do passado. Desde que deflagradas, entre março e abril, a maior parte dos trabalhadores e trabalhadoras do ensino superior, técnico e tecnológico no âmbito federal aderiu fortemente ao movimento paredista, reivindicando recomposição salarial, mudanças nas carreiras e orçamento destinado à educação, entre outras pautas. A expectativa era de que o novo governo avançasse não só no reconhecimento da justeza delas, mas na compreensão do caráter estratégico da educação na contenção do neofascismo e na construção de outro projeto de país.
O que está em questão, além de direitos trabalhistas, é a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, com profissionais respeitados, capazes de alimentar os sonhos e desejos de futuro dos filhos e filhas da classe trabalhadora. Trata-se de um projeto que enfrenta diretamente a visão neoliberal e seus mecanismos de funcionamento. Afinal, não há como desvincular a precariedade, hoje imposta às universidades, institutos federais e CEFETs, bem como aos trabalhadores e trabalhadoras da educação, à política de austeridade tão comum neste etapa do capitalismo. É o receituário neoliberal que tem justificado avanços sobre os direitos da classe trabalhadora como um todo e especialmente de servidores públicos, expressão da redução de investimentos públicos em áreas sociais. Nessa perspectiva, a fragilização da educação pública é funcional para evitar o florescimento do pensamento crítico e voltado ao atendimento não dos mercados, mas da sociedade, ainda mais neste momento em que a universidade tem se tornado, como resultado de muitas lutas que arrancaram, centralmente, as cotas para estudantes negros e pobres, para além de indígenas e quilombolas, tornando o ensino superior, técnico e tecnológico mais diverso e popular. Seu projeto, ao contrário, é a transformação da educação em uma máquina de produção de uma força de trabalho precarizada e ultraespecializada, daí a defesa de uma formação exclusivamente tecnicista.
Isso ficou muito claro no Brasil de Bolsonaro, com os seus inúmeros ataques ao setor. Basta lembrar que nos primeiros seis meses de seu desgoverno, houve a tentativa de implementar o Future-se, uma forma camuflada de avançar na transformação da educação e destinar o patrimônio das universidades federais brasileiras para a iniciativa privada. A medida foi derrubada a partir de mobilizações massivas - que ficaram conhecidas como "Tsunami da educação", sendo o principal movimento social a dar embate a Bolsonaro em 2019 - e pelas articulações internas das universidades, que sempre se mostraram espaços de resistência e mobilização nos anos subsequentes de desgoverno neofascista, apesar da pandemia e, em muitos casos, das intervenções nas reitorias, funcionais à concretização das medidas do desgoverno e à perseguição aos dissidentes.
Se as universidades foram fundamentais para a interrupção de um governo neofascista, deveriam ser também pólos de vivência e construção da democracia e de ações de ensino, pesquisa e extensão que ajudem o Brasil a olhar e buscar respostas aos problemas das maiorias sociais. Apesar das contradições óbvias de um governo de concialiação de classes e das dificuldades impostas pelo avanço da direita, essa foi a visão que ganhou nas universidades e nas urnas brasileiras em 2022. Tais expectativas, contudo, estão sendo frustradas. O governo sinaliza, desde 2023, uma lógica privatista e neoliberal de educação, da educação básica ao ensino superior. A manutenção do Novo Ensino Médio é exemplar disso. Quanto ao ensino superior, foca suas ações em projetos pontuais de curta duraçāo, em vez de fortalecer uma política educacional de Estado. Um exemplo disso é o projeto de repatriação de pesquisadores brasileiros que atuam no exterior, que prevê parceria com a iniciativa privada e investe exclusivamente na ação do pesquisador, em vez de investir nas próprias universidades.
No Brasil, o orçamento para as universidades encontra-se em desmonte desde 2016. Matérias recentes mostraram a precariedade das instalações físicas da UFRJ, a maior universidade do país. Longe de pontual, essa é a realidade das universidades brasileiras: prédios que precisam de manutenção, falta de insumos nos laboratórios, corrosão das políticas de permanência estudantil, limitação de investimentos em pesquisa e extensão. Muitas vezes os docentes retiram de seu bolso para poder trabalhar. O desmonte da carreira é outro problema, tornando a prática docente cada vez menos atrativa dentro do serviço público. De forma ainda mais drástica, vivenciamos uma tentativa de acabar com a carreira dos TAEs, cuja defasagem salarial é ainda superior à dos docentes. Hoje os TAES têm o pior salário e a pior carreira do serviço público federal, não obstante a enorme qualificação dos técnico-administrativos (percentualmente maior que a da carreira de gestores do Estado). O que essa desvalorização tenta promover é, na prática, a tercerirização dessa carreira, assim como foi feito com motoristas, jornalistas, auxiliares de serviços gerais que atuam nas instituições.
O erro de continuar impondo a austeridade não é o único. Há também uma insistência em reproduzir o silenciamento dos movimentos sociais e sindicais, como se nosso silêncio fosse calar a direita. Não só não houve o atendimento das reivindicações, como um golpe contra as organizações representativas e as categorias foi armado pelo governo, que tentou encerrar o movimento assinando acordo com a Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes-Federação), que não dispõe de carta sindical e tem representatividade inferior a 10% da categoria docente em suas bases.
Só há um sindicato nacional dos docentes do ensino superior: o ANDES-Sindicato Nacional. O Andes representa docentes de 61 universidades federais, para além de CEFETs e IFs. A Proifes está em sete. Destas sete, apenas 2 votaram pela adesão ao acordo proposto como ultimato pelo governo. A Proifes desrespeita até mesmo a sua base e tenta destruir movimento docente que só cresce. Com a tentativa de encerrar a greve por meio do acordo com esse grupo, o governo federal repetiu o golpe dado em 2012, quando houve a mais longa greve da história das federais. Então, aquele acordo assinado com a Proifes promoveu ainda mais a desestruturação da carreira docente. Felizmente, como já havíamos vivido o golpe em 2012 e também em 2015, as seções sindicais se organizaram juridicamente e conseguiram uma decisão judicial em Sergipe, que invalida o acordo golpista e obriga o governo a reabrir as mesas de negociaçoes, conforme noticiado na última segunda.
Desde as bases, a resposta da categoria, agora, foi a manutenção da greve e mesmo sua ampliação. Assembleias lotadas não só reiteraram as reivindicações e a disposição de luta, mas inclusive mais instituições entraram em greve, caso da UFPB, da UFPI, da UFersa e da UFSS. Houve rechaço da tentativa de acordo por parte das próprias bases da Federação fantasma, que seguem em greve, deslegitimando suas direções burocráticas e avançando na compreensão de que é ao Andes que devem estar filiadas. É mais que hora de o governo entender o que está ocorrendo nas universidades a fundo e avançar no diálogo e na apresentação de medidas que respondam nossas demandas.
Do contrário, políticas contra a educação podem não apenas desanimar, mas concretamente afastar um setor muito importante do governo. A vitória das reinvidicações da greve deveria ser a vitória do projeto que ganhou nas urnas em 2022. Do contrário, não é difícil antever o que ocorrerá. A história já nos ensinou.
Helena Martins é professora da UFC.
Tiago Coutinho é professor da UFCA.